Por Clarice Lispector

Gosto dos venenos mais lentos!
Das bebidas mais fortes!
Das drogas mais poderosas!
Das idéias mais insanas
Dos pensamentos mais complexos
Dos sentimentos mais fortes.
Dos cafés mais amargos!
Tenho um apetite voraz.
E os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar
de um penhasco que eu vou dizer:
E daí?
Eu adoro voar!"

domingo, 8 de maio de 2011

Memórias não póstumas

Memórias não póstumas

Há homens que nascem póstumos. Eis uma forte afirmação. Seus princípios são cravados em pedra, quase. Deveras, há homens que nascem, mas não para este mundo. Para um próximo talvez. Há homens que nascem para morrer; outros que morrem durante toda a vida, sem a percepção disto.
A obra literária machadiana é incrível. Joaquim Maria Machado de Assis foi um estupendo escritor, crítico literário e principalmente analista do contexto social de sua época. Eu não gosto dele. Na verdade, o que acontece é um misto de amor e ódio. Um amor como o dedicado a Capitu, a Simão Bacamarte. O ódio não é justificado. O que virá não é nenhuma espécie de plágio, muito mais uma paródia, inspirada na postumidade das memórias do não tão saudoso Brás Cubas.
Quando a morte chegar, que não seja abrupta. Venha de mansinho, com o badalar de sinos, ou qualquer coisa de caráter ressoante, a fim de que se faça percebida. Infelizmente, a morte não faz escândalo, muito menos avisa quando está para chegar. O que é desejado é o relato de uma vida toda, com a limitação de uma não totalidade. Um relato a fim de que as próximas gerações tomem consciência de alguém que viveu, amou, sofreu (não pouco) e morreu amando e na esperança do amor eterno.
É esperado que seja mais que uma mera sequência de recordações de remotos momentos. Momentos são fugazes. São como o pássaro, o inseto voador (se assim preferir) que em segundos voam para longe, mediante quaisquer movimentos. Por mais ternas que sejam as lembranças, um dia elas são esquecidas, ou tornam-se mentira, uma vez que passaram para sempre, e sua realidade não pode mais ser provada.
As ideias de um homem, contudo, jamais morrem ou são apagadas. Embora sua materialidade seja pouco palpável, são internalizadas por outros homens, ou por obras. Que as memórias sejam, não de momentos, mas das ideias que consumiram uma vida. Por uma ideia mundos e fundos podem ser movidos; homens podem ser mortos. A defesa de uma convicção pode findar amores, amizades, promover a solidão, a incompreensão.
Nenhuma espécie de traição é justificável, muito menos louvável. Todavia a traição perante a própria consciência, as próprias convicções é um crime inafiançável, um pecado mortal. As convicções estão para além das certezas. Não são inatas. São construídas com tempo, suor e sangue. Há indivíduos que morrem, sem jamais possuírem a convicção de coisa alguma. Estas devem ser perduradas e transmitidas em um futuro.
Certamente, haverá sujeitos que farão alarde e se sentirão injustiçados com determinadas convicções. Mas o que haverá de ser feito? Ninguém, nenhum ilustre pensador jamais afirmou que convicções são, necessariamente, verdades. Verdades, todavia, podem ser construídas por convicções. Para esta teoria há pensador que justifique. Ainda mais quando se concebe que as verdades são relativas, questões de referencial.
Há indivíduos que consomem toda a vida na incessante busca pela execução do bem. Uma tarefa de tamanha e singular honraria. O decepcionante reside na percepção das motivações mais intrínsecas de tal execução. Não se executa o bem de maneira desinteressada, simplesmente pelo bem comum. Há interesses diversos em jogo, como a conquista da salvação mediante a caridade, ao amor ao próximo, que deveria ser algo gratuito e natural. Não obstante, o pior ainda está por ser desvendado. Pode, inclusive, ser encarado como nefasto. O bem é executado com o intuito de impor a supremacia do poder próprio sobre o outro. Sua continuidade é a manutenção do vinculo de dependência gerado desta imposição, fortalecendo o outro, fazendo com que este acredite que foi o poder alheio que promoveu seu fortalecimento. Isso soa tão desprezivelmente. Infelizmente, uma reflexão apurada pode demonstrar que isso é fato.
Outra coisa óbvia e não declarada é a possessividade intrínseca ao amor. Isto está além de qualquer análise filosófica. Com o decorrer do tempo, e principalmente com o fim de uma relação amorosa é perceptível que o fator promotor do amor era a posse. O amor só possui sentido, só é substancializado com a posse do ser amado. Fora isso, é um amor platônico, etéreo. No entanto, o mais dilacerante ainda está por vir. A beleza do amor reside, justamente, no próprio ato de amar, muito mais que no ente amado. O sujeito ama mais seu amor pelo ser amado, do que este propriamente dito. Pode parecer sem sentido ou surreal, mas basta considerar que a maior parte do sentimento amor advém de uma imagem idealizada da pessoa amada, e não da imagem real desta.
Nenhuma destas convicções foram construídas sem o componente dor. Esta foi a única constante em meio a imensas confusões e reviravoltas. O entendimento, muitas vezes, era quase instantâneo de tão óbvio. Contudo, a aceitação era mais difícil, duríssima. Era, e ainda é, para qualquer indivíduo, complicadíssimo aceitar algo que rompe com o que, então, era aceito como verdade absoluta. Com a aceitação nasce, deveras, a ciência da inexistência de verdades absolutas.
A morte das verdades absolutas, para alguns causa também a morte de Deus pelas mãos destes. Todavia, Deus não precisa morrer, uma vez que o que ele pede é, apenas, a sua fé. Há quem se retorça ao ouvir esta sentença. Todavia, a fé é nada mais que acreditar, é a convicção de que tal coisa existe, uma vez que não existem provas materiais para comprovar sua não existência, bem como sua existência. Acreditar em Deus é questão de fé, já nas histórias da carochinha que as Igrejas contam, é burrice. O que faz das Igrejas medíocres é o fato de reles homens desejarem a sobrenaturalidade, e quem sabe se igualar a Deus, mas isto eles nunca admitiriam.
Com a leitura deste relato há os que pensarão que esse Brás Cubas parodiado é um sujeito taciturno, casmurro ou infeliz. Pode ser que estejam certos. No entanto, estão sendo superficiais. Uma criatura que reflete demais o que acontece ao seu redor, e que, inúmeras vezes, sucumbe aos seus pensamentos e devaneios, jamais seria, necessariamente infeliz. A felicidade é filha, irmã gêmea do desejo. Embora convicções deste taciturno, possam até se configurarem como pessimistas, descaradas ou deprimentes, não impedem que ele seja um homem-máquina-desejante.
Esse Brás Cubas dignificado não é um homem póstumo, nunca o será. Podem inferir sobre ele quaisquer juízos de valor, com exceção de afirmar que morreu por toda vida e que não a viveu de modo intenso e desesperado. Caso dissessem, desmentiriam Camilo Castelo Branco ao dizer que ele “amou, perdeu-se e morreu amando.”.

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